segunda-feira, 15 de abril de 2024

O real do Evangelho


O real do Evangelho

Marcelo Henrique*


Kardec teve coragem para publicar a “imitação” que virou “autêntica obra”, desafiando o poder clerical do seu tempo. Sua obra “O evangelho segundo o Espiritismo”, permanece provocando o desconforto de todo aquele “pregador” que pretende manter o “rebanho” sob suas rédeas, usufruindo algum benefício desta relação.

Em quinze de abril de 1864, depois de sete anos de seleção criteriosa de mensagens recebidas à sua vista ou enviadas por carta dos mais diferentes lugares, sobretudo da Europa, Allan Kardec resolveu publicar um livro que seria, ainda mais, afrontoso à moral religiosa vigente, seja ela católica ou protestante.

É fato que, desde a publicação do livro pioneiro – “O livro dos espíritos”, em abril de 1857 – os embates nem sempre eram amistosos, sobretudo da parte dos interlocutores religiosos. Mas, em “O que é o Espiritismo”, no Terceiro Diálogo, com o Padre, vemos um Kardec didático e compreensivo, como se ainda estivesse na cátedra escolar, proporcionando, por meio de dialéticas detalhadas, a compreensão mais acurada dos propósitos espiritistas.

Na Espanha, no entanto, o clero não estava nem um pouco disposto a dialogar e as ligações íntimas entre Igreja e Estado permitiram o confisco e a queima em praça pública de 300 volumes de obras espíritas, no “Auto de Fé de Barcelona” (9 de outubro de 1861).

Mas, ao publicar “Imitação do Evangelho segundo o Espiritismo”, Rivail-Kardec alcança o coração da Igreja Romana, porque se “apropria” de um conhecimento que, até então, somente pertencia à religião institucionalizada. Vale lembrar que, de um universo de mais de cinquenta textos que falam dos feitos e das pregações de Jesus de Nazaré, apenas quatro deles tinham reconhecidos pela cúria romana como oficiais – canônicos – sendo, os demais, tratados como apócrifos.

A audácia de Rivail-Kardec

Como, então, poderia alguém não ligado à religião, falar da vida de “Nosso Senhor” e ainda interpretar parábolas, atos, ações e curas (“milagres”), no contexto compreendido entre o nascimento e a paixão e morte daquele Sublime Carpinteiro, dando interpretações bem distintas daquelas pertencentes aos dogmas religiosos?

Blasfêmia!

Preliminarmente, Kardec não se valeu do conteúdo integral dos textos atribuídos a João, Lucas, Marcos e Mateus. Numa análise completa do conteúdo do “Evangelho Espírita”, não será possível encontrar muitos dos textos que estão nos capítulos e versículos do “Novo Testamento”. Espero que isto não seja surpresa para você, que estuda o Espiritismo.

Afinal de contas, sabe-se, os Evangelhos sofreram diversas modificações no curso da História, perpetradas pelo poder religioso vigente, com a intenção de fundamentar a dogmática litúrgica. Historicamente, três dos quatro autores viveram proximamente a Jesus, sendo dois deles seus discípulos (Mateus e João). Marcos, provavelmente, tenha sido um adolescente cujos pais acompanhavam alguns dos feitos e pregações do Nazareno, recebendo informações dos mesmos, enquanto Lucas teria vivido distante de Jesus, mas buscou aproximação com Maria, sua mãe, ouvindo dela muitos dos relatos.

Mesmo assim, a Igreja Romana apropriou-se de tais relatos e impregnou os mesmos de elementos para justificar os fundamentos da religião e, numa análise espírita, com base nos princípios e fundamentos da Doutrina dos Espíritos, percebe-se o tom místico e sobrenatural que é presente em muitas das passagens evangélicas.

A proposta do Professor francês para falar da Ética de Yeshua

Então, o que fez Kardec em parceria com as Inteligências Superiores? Selecionou os trechos que seriam verossímeis e corresponderiam à Moral de Jesus para explica-los à luz do Espiritismo. É o que se vê, logo na abertura do livro, no subtítulo da obra, em sua versão definitiva – que não é mais “Imitação”, mas, sim, “O Evangelho segundo o Espiritismo” – onde se lê: “Contendo a explicação das máximas morais do Cristo, sua concordância com o Espiritismo e sua aplicação às diversas situações da vida”.

Eis, aí, o ROTEIRO da obra “mais religiosa” do Espiritismo. E esta delimitação dada por Kardec é essencial, não só para o entendimento do que figura nos vinte e sete capítulos temáticos da obra – excepciono o último, o XXVIII, porquanto ele exorbite a proposta inicial da obra, para servir de referência para os que quiserem praticar a prece “segundo” o Espiritismo – como para demonstrar a desnecessidade “doutrinária” de ir buscar, nos textos da Bíblia (Novo Testamento) católica, por exemplo, versículos que não foram apropriados e interpretados conforme a razão lógica espírita. E, tampouco, outros livros como cartas, epístolas ou os atos dos apóstolos.

Quer conhecer – e bem – o homem Yeshua (Jesus de Nazaré), filho biológico de Maria e José? Centre seus esforços, dedicação, tempo, interesse e muita atenção, nos textos de “O Evangelho”. Embora Jesus também apareça nas demais obras kardecianas, é neste que ele é desnudado, em “Espírito e Verdade”.

Não é à toa, também, que o Evangelho Espírita é o livro de maior tiragem e maior vendagem – em termos de edições e editoras que, até hoje, o comercializaram e comercializam. Os números editoriais consagraram-no como o “livro mais popular” entre os da literatura espírita clássica, demonstrando o forte viés religioso dos espíritas brasileiros.

Igreja? Seita? Religião? Não!

Mas Kardec não pretendeu fundar nenhuma igreja ou seita. Ao cunhar o Espiritismo como um neologismo – não vou discutir, aqui, se a palavra “Spiritsm” era ou não vigente na segunda metade do século XIX, por não ser o objetivo deste artigo e, também, por já existirem textos suficientes no meio espírita sobre isso – para definir a “Doutrina dos Espíritos”, ele a delimitou, no ramo dos conhecimentos humanos, como sendo uma “Filosofia Espiritualista com bases científicas e consequências ético-morais”. Nem mais, nem menos.

Este livro, que homenageamos em função da data, é muito mais do que um “livro de cabeceira”, apesar dele conter inúmeras mensagens relevantes para os distintos momentos da trajetória de vida dos espíritas (ou dos simpatizantes). É um livro para ser criteriosamente estudado, inclusive em face das interconexões que a obra tem com as demais.

Mas o estudioso dedicado do Espiritismo poderá perceber um outro elemento. Ao realizar o amplo exame do “laboratório mediúnico” de Rivail-Kardec, a “Revista de Estudos Psicológicos”, ou “Revue Spirite”, encontrará uma imensidão de textos que lá estiveram em maturação (1857-1869) para que, talvez, pela concordância universal dos ensinos dos Espíritos, em relação aos novos textos, pudesse proporcionado uma “edição revista e ampliada” d’“O Evangelho”, com muitas questões afetas a Jesus e o seu “ministério” de três anos sobre a Terra, com novos contornos, quem sabe, para as questões afetas às lições e às curas.

Remontando ao processo mediúnico, aquele professor esteve em contato espiritual, pela intuição – já que não era dotado de mediunidade ostensiva – com muitos Espíritos adiantados, em inteligência e moralidade, como Verdade, Erasto, Fénelon, S. Luís, Agostinho, Francisco, Antônio. Alguns identificados em mensagens, outros anônimos. Não nos resta dúvidas de que o Mestre Maior também estivesse presente na elucidação de muitas questões espirituais.

O Evangelho de Kardec, hoje

Hoje me pego folheando o Evangelho, não só para embasar as qualificadas e produtivas discussões que fazemos, já há três anos, recém-completados, em nossa “sala de aula virtual permanente”, o grupo “Espiritismo COM Kardec”, no Facebook, mas para alinhavar os significados espíritas para a personalidade ímpar do Rabi, com a atmosfera espiritual do Planeta e para a utilização do mesmo como plataforma de ação para a consolidação de uma Humanidade transformada, no adiante estágio regenerativo, dentro da progressão dos mundos.

Parabéns, Kardec! Sua coragem em publicar a “imitação” que virou “autêntica obra”, desafiando o poder clerical do seu tempo, permanece provocando o desconforto de todo aquele “pregador” que pretende manter o “rebanho” sob suas rédeas, usufruindo algum benefício desta relação.

Mas não entre nós. Porque o “Evangelho Espírita” é sinônimo e ferramenta de LIBERTAÇÃO espiritual! Este é o REAL sentido do Evangelho!

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 *O autor é coordenador do grupo Espiritismo COM Kardec e preparou este texto em homenagem aos 160 anos do lançamento da obra O evangelho segundo o Espiritismo.


terça-feira, 2 de abril de 2024

Leitura (ou não) das obras fundamentais de Allan Kardec por dirigentes espíritas

 


Leitura (ou não) das obras fundamentais de Allan Kardec por dirigentes espíritas

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 31, abril de 2024, p. 9-10

 

Conforme levantamento realizado com 115 dirigentes espíritas (MILANI FILHO, 2022), constatou-se uma situação preocupante com relação à divulgação doutrinária: em média, apenas 56,5% dos respondentes afirmaram ter lido, integralmente e pelo menos uma vez, todas as 5 obras consideradas fundamentais do Espiritismo, de autoria de Allan Kardec.

Na Tabela 1, observa-se a frequência de respostas, por tempo declarado pelo dirigente de adesão ao Espiritismo.

 

Tabela 1 – Leitura integral das obras fundamentais

                         Fonte: Milani Filho, 2022

 Legenda

LE – O livro dos espíritos;  LM – O livro dos médiuns; ESE – O evangelho segundo o espiritismo; CI – O céu e o inferno; GEN – A gênese.

 

            Entre todos os respondentes, as obras mais lidas são: O livro dos espíritos (93,0%) e O evangelho segundo o espiritismo (91,3%). As obras menos lidas, por sua vez, são: O livro dos médiuns (78,3%), O céu e o inferno (70,4%) e A gênese (69,9%).

Conforme o esperado, os respondentes com mais tempo de vivência espírita apresentam maior familiaridade com as obras indicadas. Por exemplo, 71,2% dos dirigentes com mais de 30 anos declarados de adesão ao Espiritismo já leram todas as obras fundamentais, entretanto, isso significa que 28,8% desse grupo experiente não leram esse conjunto de livros. Certamente, essa ausência de leitura pode implicar desconhecimento de conteúdo doutrinário relevante.

A participação dos respondentes com tempo inferior a 5 anos de adesão é pequena (3,5%), mas verifica-se que desses, 50% nunca leram uma das obras fundamentais de maneira integral, 25% leram todas e os demais 25% leram, ao menos uma delas, de maneira completa.

            No grupo com tempo entre 6 e 10 anos de adesão, representando 8,7% do total da amostra, 90% já leram integralmente ao menos uma das obras, ou seja, 10% não leram integralmente nenhuma delas. Quase os mesmos percentuais do grupo de 11 a 20 anos.

            Na faixa de 21 a 30 anos, 52,0% leram todas as obras e, consequentemente, 48,0% desses dirigentes espíritas não leram pelo menos uma das cinco obras fundamentais em sua totalidade.

            O fato de 56,5% dos respondentes não terem lido integralmente ao menos uma das obras fundamentais pode sinalizar um problema na argumentação doutrinária, principalmente pelo fato dessas pessoas ocuparem posições de dirigentes em casas espiritas. Diante da frequência de leitura inferior de obras como O livro dos médiuns, O céu e o inferno e A gênese, a própria compreensão dos princípios e valores doutrinários fica comprometida.

            O desconhecimento das cinco obras fundamentais, sem contar o restante dos livros com riquíssimo conteúdo doutrinário que deveriam ser leitura obrigatória a qualquer um que realmente queira conhecer e praticar o Espiritismo, como a coleção da Revista Espírita, O que é o Espiritismo, Viagem espírita de 1862 etc., faz com que alguns adotem narrativas compensatórias para relativizar a relevância do estudo. Ao justificar, por exemplo, que o importante é fazer o bem e não ficar preocupado em estudar sobre a natureza, a origem e o destino dos Espíritos, assim como sobre as suas relações com o mundo corporal, aquele que se autodeclara espírita e não conhece os princípios da doutrina que supõe abraçar, pode desorientar alguém que realmente deseja conhecer o Espiritismo com ideias fantasiosas, místicas e supersticiosas se estiver na posição de dirigente de uma instituição espírita.

      Na edição de dez/1868 da Revista Espírita, ao apontar os riscos de cismas no Espiritismo, Allan Kardec destacou que o personalismo e as interpretações equivocadas do conteúdo doutrinário seriam algumas de suas causas.

          Ressaltando-se que a clareza e a objetividade do ensino deveriam ser os fatores relevantes para a unidade doutrinária, os diferentes graus de compreensão do Espiritismo, aliados às paixões pessoais de alguns supostos adeptos, podem promover a disseminação de ideias divergentes dos princípios doutrinários e provocar a desunião.

Desde sua origem, não faltaram no movimento espírita propostas fantasiosas feitas por místicos que desafiavam a lógica em nome do ocultismo e revelações exclusivas. Sempre “em nome do bem”. Todos foram, com fraternidade e firmeza, contra-argumentados por Kardec, o qual demonstrava a falta de coerência doutrinária e de sustentação filosófica e científica dessas propostas mirabolantes e supersticiosas.

            Ao dirigente espírita, portanto, não basta a boa vontade, mas o conhecimento para desempenhar seu papel orientador de maneira coerente. Estudar as obras de Kardec é fundamental.

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*MILANI FILHO, M. A. F. Coerência doutrinária espírita: limites e desafios. In: FONSECA, A. Coerência doutrinária na pesquisa espírita. 1ª ed. São Paulo: CCDPE, 2022. Cap. 1, p. 21-51.


sexta-feira, 29 de março de 2024

Soneto "À deriva do conhecimento"


À deriva do conhecimento


Na ilusão do saber sem razão definida,

Flutua o tolo em mar revolto,

Sem ancoradouro, sem bússola guia,

Perdido em devaneios, em sonhos soltos.


Pois o saber que não se curva à lógica,

É como um castelo erguido sobre areia,

Frágil, efêmero, sem fundamento sólido,

Um triste espetáculo de ilusão alheia.


Vazio é o discurso que desdenha a razão,

Que se envolve em mistérios e suposições,

Carente de método, perdido na escuridão.


O verdadeiro saber busca a clareza do pensar,

Nas trilhas do método, segue a jornada,

Rumo ao conhecimento que nos faz avançar.


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 (Soneto elaborado pelo ChatGPT 3.5 em 28/03/24)

Título e prompt por Marco Milani


quarta-feira, 27 de março de 2024

Nota Oficial da USE sobre a não recomendação de passes em animais nos centros espíritas


 

Sobre a não recomendação de passes em animais nos centros espíritas

Ainda que a assistência fluídica (passe) aos animais seja uma prática potencialmente benéfica à saúde veterinária, inexistem estudos científicos conclusivos que atestem sua eficácia generalizada.

Adicionalmente, todas as práticas desenvolvidas no centro espírita devem atender, rigorosamente, as normas sanitárias e legais vigentes ao respectivo funcionamento da instituição. Destaca-se, por exemplo, as exigências descritas na Resolução 1275/2019, do Conselho Federal de Medicina Veterinária, aos locais de assistência aos animais.

Os locais destinados às terapias veterinárias não se confundem com ambientes destinados à assistência a humanos, buscando, inclusive, evitarem-se problemas respiratórios graves às pessoas com alergias e outras vulnerabilidades.

Nesse sentido, a União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo (USE), conforme decisão de seu Conselho Deliberativo Estadual, em reunião realizada em 03/03/24, NÃO RECOMENDA a aplicação de passes nem qualquer outra terapia em animais nos centros espíritas.


São Paulo, 05 de março de 2024

Rosana Amado Gaspar

Presidente

USE-SP


domingo, 3 de março de 2024

Ortodoxia e heterodoxia espíritas

 

Ortodoxia e heterodoxia espíritas

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 30, mar/abr 2024, p. 8-9

 

No Espiritismo, assim como em diferentes áreas do conhecimento, encontram-se presentes os conceitos de ortodoxia e heterodoxia, ainda que possam contar com interpretações e aplicações específicas, conforme o grupo em análise.

Sinteticamente, a ortodoxia espírita refere-se à plena concordância e adesão ao ensino dos Espíritos apresentado nas obras fundamentais de Allan Kardec, bem como à argumentação e às práticas coerentes com os respectivos princípios e valores doutrinários.

A heterodoxia espírita, por sua vez, liga-se às interpretações, práticas e narrativas que se afastam significativamente dos ensinos expressos em Kardec. Ela é caracterizada pela adoção de pressupostos divergentes dos princípios originais, seja pela incorporação de conceitos e ideias estranhas ao corpo doutrinário ou por variações interpretativas dos mesmos princípios.

Enquanto a ortodoxia está fundamentada em um conjunto teórico estruturado e consistente, a heterodoxia propõe, comumente, uma revisão e alteração dos princípios basilares mediante a adoção de novos elementos estruturantes.

Um equívoco recorrente dos menos afeitos ao pensamento científico e à própria Doutrina Espírita, é a suposição de que a ortodoxia prende-se à imobilidade e à cristalização das ideias, como se fosse um sistema fechado e impermeável a descobertas, impedindo o avanço no conhecimento. Tal suposição decorre do desconhecimento de que o Espiritismo foi concebido para progredir junto à ciência, caminhando lado a lado, de maneira que se for provado que algo está incorreto, abandona-se o que se provou falso para se adotar o verdadeiro.

Assim, o espírita ortodoxo está, naturalmente, aberto à análise e aceitação do novo, desde que esse prove-se correto em bases sólidas e objetivas, e não sobre opiniões e propostas hipotéticas que carecem da devida validação. Igualmente como agiu Kardec, pode-se afirmar que a prudência é uma condição necessária para a fé raciocinada.

Aquele que não analisa novos fatos e nega o caráter progressivo do Espiritismo não compreendeu a própria dinâmica ortodoxa espírita.

Por outro lado, a heterodoxia, ao partir de premissas e conceitos hipotéticos ou doutrinariamente divergentes, concebe um novo corpo teórico sobre bases que ainda carecem de legitimação e validação. Imprudentemente, abraçam-se ideias antagônicas ou destoantes ao ensino dos Espíritos que passaram pelo critério da universalidade adotado por Kardec, exigindo reformulação sem provas de princípios e práticas.

O ponto de tensão entre os diferentes posicionamentos de adeptos ortodoxos e heterodoxos é a ausência de um método capaz de legitimar e validar as informações doutrinárias diante de novos fatos e ideias no complexo ambiente tecnológico de hoje. Sob a perspectiva ortodoxa, somente por meio de um método objetivo é possível validar hipóteses e novas informações. Sob a perspectiva heterodoxa, o método é secundário, pois a validação poderia ocorrer subjetivamente, inclusive servindo-se de argumentos falaciosos de autoridade que transformariam opiniões de médiuns e desencarnados famosos em revelações indiscutíveis.

A prudente recomendação de Erasto denota o cuidado que todo adepto coerente com a fé raciocinada deveria expressar.

 

“Desde que uma opinião nova venha a ser expendida, por pouco que vos pareça duvidosa, fazei-a passar pelo crivo da razão e da lógica e rejeitai desassombradamente o que a razão e o bom senso reprovarem. Melhor é repelir dez verdades do que admitir uma única falsidade, uma só teoria errônea. Efetivamente, sobre essa teoria poderíeis edificar um sistema completo, que desmoronaria ao primeiro sopro da verdade, como um monumento edificado sobre areia movediça, ao passo que, se rejeitardes hoje algumas verdades, porque não vos são demonstradas clara e logicamente, mais tarde um fato brutal ou uma demonstração irrefutável virá afirmar-vos a sua autenticidade.”[1]



[1] Ver O livro dos médiuns, Capítulo XX, item 230.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Fé raciocinada e análise de comunicações

 

Fé raciocinada e análise de comunicações

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 199, jan/fev 2024, p. 27

 

          A palavra "razão" pode ter diferentes significados dependendo do contexto em que é utilizada. Um deles refere-se à capacidade de pensar, analisar, e chegar a conclusões lógicas. Assim, vincula-se diretamente ao raciocínio de maneira ordenada e coerente, seguindo princípios e regras de inferência.

          Um outro significado de "razão" baseia-se na explicação ou causa por trás de algo. Por exemplo, na frase "qual é a razão para sua decisão?" questiona-se qual é a justificativa ou motivo para a respectiva decisão.

          Essa discussão é pertinente quando se busca compreender o conceito de fé raciocinada sob a perspectiva espírita, considerando seu caráter analítico e causal para se aceitar algo como legítimo e verdadeiro. Por outro lado, a fé cega seria aquela que não é fundamentada na razão, nem em evidências empíricas ou no pensamento crítico.

          Ao afirmar que a fé inabalável é aquela “capaz de encarar de frente a razão, face a face, em todas as épocas da humanidade”[1], Allan Kardec reforça a crença em algo que esteja devidamente fundamentado pelos fatos e pela razão. Não se trataria de uma crença cega, sustentada por argumentos de autoridade e típica de religiões tradicionais, que poderia ser abalada diante de fatos que expusessem sua falsidade.

          Para se aplicar o princípio de crença racional, entretanto, exige-se do adepto uma postura familiarizada com o pensamento crítico e com o distanciamento emocional esperado do objeto analisado para garantir objetividade e imparcialidade. Isso significa que o adepto deve tentar minimizar influências pessoais e emoções que possam afetar a interpretação dos resultados.

          A análise racional de mensagens mediúnicas, por exemplo, deve ser realizada indistintamente e independentemente do nome do suposto Espírito e do médium. Conforme recomendação oferecida a Kardec pelo Espírito São Luis (e que obviamente também se aplicava a ele) é a seguinte:

 

 “Qualquer que seja a confiança legítima que vos inspirem os Espíritos que presidem aos vossos trabalhos, uma recomendação há que nunca será demais repetir e que deveríeis ter presente sempre na vossa lembrança, quando vos entregais aos vossos estudos: é a de pesar e meditar, é a de submeter ao cadinho da razão mais severa todas as comunicações que receberdes...”[2]

 

          Não basta, portanto, que a comunicação tenha sido recebida por um médium de confiança ou assinada por algum Espírito conhecido, pois não há qualquer garantia de legitimação ou validação do conteúdo por meio de argumento de autoridade. Essa recomendação era válida para a época de Kardec e continua a ser hoje, uma vez que as relações entre encarnados e desencarnados são perenes.

          Uma demonstração sobre o problema de se supor que médiuns de confiança não permitiriam a manifestação de Espíritos de origem duvidosa ou que produzissem conteúdo falso encontra-se em O livro dos médiuns, capítulo XXXI – Comunicações apócrifas. Os mesmos médiuns habituados a receber mensagens de Espíritos de alta envergadura moral, receberam comunicações que Kardec questionou a autenticidade e legitimidade das mesmas.

          Por mais que se tenha afeição a determinados médiuns e Espíritos, a análise crítica do conteúdo de todas as comunicações deve prevalecer em nome da fé raciocinada.

 

 

 

 



[1] Ver O evangelho segundo o Espiritismo, capítulo XIX, item 7.

[2] Ver O livro dos médiuns, capítulo XXIV, item 266.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Suicídio por amor?


Suicídio por amor?

 

Marco Milani

 

Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 199, jan/fev 2024, p. 15-16

  

          Na 2ª parte do livro O céu e o inferno, de Allan Kardec, encontram-se descritos casos de pessoas que haviam desencarnado recentemente, possibilitando-se conhecer as situações que se depararam no chamado “mundo dos Espíritos”. Há relatos de Espíritos felizes, sofredores, medianos, suicidas, dentre outros. Trata-se de riquíssima ilustração sobre o que acontece após a morte, útil para auxiliar os adeptos a confrontar essa realidade com o panorama que livros romanceados e de ficção costumam citar.

          Dentre aqueles que ceifaram a própria vida carnal, apresenta-se o episódio de Louis G., um jovem sapateiro enamorado por sua noiva, a costureira de botas, Victorine R.

O casal, em um almoço rotineiro, teve um pequeno desentendimento verbal. Arrependido e disposto a pedir perdão, Louis dirige-se à casa de Victorine no dia seguinte, mas qual não foi a sua surpresa quando percebeu que a jovem, aproveitando-se da oportunidade, decidiu impedir a entrada do noivo ao não abrir a porta, sinalizando que não o perdoaria pela desavença.

Inconformado com a recusa em ser atendido e vociferando que Victorine nunca mais teria alguém que a amasse tanto quanto ele, Louis comete o tresloucado ato de apunhalar-se, perfurando o próprio coração.

          Allan Kardec, ao questionar o Espírito São Luís sobre a responsabilidade indireta da moça no trágico evento, obteve como resposta a confirmação de que ela era, proporcionalmente até onde conseguisse agir, culpada, pois não o amava e alimentou esperanças e sentimentos no rapaz os quais ela não compartilhava.

          Em novo questionamento, São Luís destaca que o ato suicida de Louis não teria a mesma causa daqueles que fogem da responsabilidade da vida por covardia, então as consequências seriam atenuadas, mas isso também não o isentaria da ação criminosa, mesmo que impulsiva e não-premeditada.

          Ao ser evocado, Louis reconhece que cometeu um erro matando-se por ela, pois ela não o merecia e ele sofria pela situação. Kardec ponderou que Louis já estava vivenciando os sofrimentos decorrentes do ato, mas que Victorine R. arcaria com as maiores consequências por não ter sido franca e por iludir.

          Alguns poderiam julgar que esse caso de suicídio foi motivado por “amor”, porém, o amor legítimo é bom e não promove desarmonia psíquica. Dessa maneira, a violência praticada para abreviar a vida com as respectivas repercussões não se caracterizam como uma ação benéfica, logo, afasta-se da essência do Bem.

Como exemplificado por Louis e Victorine, nenhum “amor” não correspondido justifica o suicídio.

          A maturidade moral, o equilíbrio emocional e, principalmente, o conhecimento sobre a realidade espiritual, sobre as responsabilidades envolvidas e sobre a continuidade da existência são fatores determinantes para o indivíduo enfrentar os desafios e insatisfações sob novas perspectivas, improváveis de serem percebidas sob a ótica materialista.

          Considerando que os jovens estão no grupo que historicamente possui participação significativa nos casos de suicídio e, ainda, que 96,8% dos casos de suicídio estão ligados a transtornos mentais, como depressão, e que poderiam receber assistência médica especializada, torna-se imprescindível a discussão dessa situação com os próprios jovens.[1] Começando-se na família.